Deus bíblico pode ter tido uma esposa, afirmam pesquisadores
Inscrições
indicariam que Javé teria tido como companheira a deusa da fertilidade Asherah.
Tese é polêmica; outros especialistas dizem que Deus só 'absorveu' atributos da
deusa.
Será que uma deusa pagã, atacada
na Bíblia como uma das maiores inimigas do culto ao Deus verdadeiro, poderia
ser, na verdade, a esposa Dele?
De forma bastante simplificada,
esse é um dos principais debates que dividem os historiadores da
religião do antigo Israel nos últimos tempos.
Inscrições misteriosas, pequenas
estatuetas de cerâmica e o próprio texto da Bíblia indicariam que a deusa em
questão, conhecida como Asherah, não teria sido adorada como rival de Javé, o
Deus judaico-cristão, mas sim como sua companheira.
Isso, é claro, para um dos lados
do debate.
Para outros pesquisadores, os
símbolos da deusa Asherah (cujo nome às vezes é aportuguesado como
"Asserá") teriam sido simplesmente "incorporados" pelo
culto de Javé, sem que a deusa fosse adorada como entidade distinta pelos
antigos israelitas.
A ambigüidade é, em parte, lingüística: embora
Asherah fosse o nome de uma deusa dos cananeus (habitantes pagãos da
Palestina), a palavra também é um substantivo comum, "asherah", que
designa um poste de madeira usado para cerimônias religiosas.
"As posições estão bem
marcadas: uns acreditam que se trata de um símbolo cúltico, outros já assumem
que se trata de uma deusa.
No entanto, uma coisa não
necessariamente exclui a outra, porque o poste também simbolizava a deusa, de
forma que uma referência a ele sugere o culto a Asherah",
Menções numerosas
"Na Bíblia
hebraica existem mais de 40 referências a Asherah e ao seu símbolo,
inclusive demonstrando a sua presença dentro do Templo de Jerusalém, o Templo
de Javé",. Nessas referências, a deusa é sempre retratada como uma
influência religiosa negativa dos povos vizinhos sobre os
israelitas, competindo com o culto do verdadeiro Deus.
Cordeiro está estudando o impacto da reforma
religiosa liderada por Josias, rei de Judá (o reino israelita do sul), por
volta do ano 620 a.C., na qual o símbolo da deusa teria sido arrancado do
Templo e queimado.
No entanto, o culto a Asherah
parece ter sido mais importante fora de Jerusalém, nos chamados "lugares
altos", afirma a pesquisadora.
Em tais locais, o poste
de madeira era substituído por árvores vivas como símbolo da deusa.
"Eram santuários ao ar livre, nos topos das montanhas.
Isso evidencia uma profunda ligação com
a natureza", diz Cordeiro. O culto a Asherah seria uma forma de
reverenciar a fertilidade feminina e o papel da mulher como doadora ou
mantenedora da vida. "E a árvore é o símbolo dessa abundância",
avalia a pesquisadora.
Durante muito tempo, esse tipo de
culto foi considerado uma influência religiosa estrangeira sobre o povo de
Israel, conforme o que dizia a Bíblia.
Mas o consenso atual é que os
israelitas não tiveram uma origem separada dos cananeus, seus vizinhos
pagãos.
A maior parte dos habitantes de Judá e Israel
(nome um tanto confuso do reino israelita do norte) parecem ter sido um grupo
de origem majoritariamente cananéia que foi assumindo uma entidade cultural
distinta aos poucos. E, entre os cananeus, Asherah era a esposa de El, o
soberano dos deuses -- mais ou menos como Zeus, na mitologia grega, tinha sua
mulher divina, a deusa Hera.
Evidência direta?
É aqui que a arqueologia traz
dados surpreendentes sobre a questão.
O sítio arqueológico mais importante
para o debate sobre Asherah talvez seja o de Kuntillet Ajrud, localizado
no Sinai egípcio, perto da fronteira com Israel.
O lugar parece ter sido uma
espécie de "pit stop" de caravanas no deserto, e também ter abrigado
um antigo santuário.
Inscrição em hebraico do ano
800 a.C. no alto pede benção de "Javé de Samaria e sua
Asherah". Casal abaixo do texto, com aspecto bovino, poderia retratar
o deus e sua esposa, segundo alguns especialistas (Foto: Reprodução)
Inscrições e desenhos em fragmentos
de cerâmica de Kuntillet Ajrud revelam frases, datadas em torno do ano 800
a.C., pedindo a benção de "Javé de Samaria [capital do reino
israelita do norte] e sua Asherah" e "Javé de Teiman e sua
Asherah". No caso da primeira frase, há um desenho estranhíssimo de duas
figuras com corpo humano e cabeça que lembra a de bovinos, uma delas com traços
mais masculinos e outra com traços mais femininos. Será que era assim
que alguns dos antigos israelitas imaginavam Javé e sua esposa
Asherah?
"Temos outros dados que
indicam a associação de Javé com a figura do touro, representando a força, o
poder, principalmente no culto de Samaria",. Outros pesquisadores, como
Mark S. Smith, da Universidade de Nova York, contestam a associação de
Javé com uma consorte chamada Asherah nessas inscrições.
Para eles, a gramática do hebraico
é esquisita: o termo "sua Asherah" parece se referir a um objeto, não
a uma pessoa ou a uma deusa.
Com barriga de grávida e
seios protuberantes. "Essas imagens continuam sendo comuns até o século 6
a.C., quando Jerusalém é destruída e parte de seus habitantes são exilados na
Babilônia", lembra ele.
Outras estatuetas femininas feitas
por antigos israelitas: os traços maternais, como seios fartos e ventres
grávidos, são enfatizados nessas imagens (Foto: Reprodução)
Pós-exílio
Se o culto a Asherah era tão comum
quando esses indícios esparsos indicam, o que teria levado ao fim dele? A
Bíblia explica o processo como uma contaminação constante da religião de Israel
pelos povos pagãos, a qual nem muitas reformas religiosas purificadoras, como a
do rei Josias, foram capazes de apagar antes do exílio na Babilônia.
Acredita-se que muitas dessas histórias
de reforma foram projeções dos sacerdotes do Templo de Jerusalém,
elaboradas na época depois do exílio. "A comunidade dos que voltam
da Babilônia se organiza em torno do Templo de Jerusalém, sob a liderança
dos sacerdotes e com o apoio do Império Persa [que dominou a região
depois de vencer a Babilônia].
Então, toda ameaça a esse processo
de centralização do poder sacerdotal foi combatida, de forma que só acabou
sobrando o culto a Javé. Foi um acidente histórico, num momento crítico,
que acabou se tornando a visão dominante."
Os eventos antigos têm implicações
para a própria visão excessivamente masculina de Deus que acabou se tornando
dominante entre judeus e cristãos.
Não é que a sociedade na qual
Asherah era adorada fosse necessariamente igualitária entre homens e mulheres,
pondera ela, mas pelo menos abria espaço para enxergar o sagrado com um lado
feminino.
"Reimaginar o sagrado como
Deusa é reimaginar as relações de poder, não numa tentativa de apagar a
presença de Deus, mas sim de dar espaço ao feminino no sagrado, o feminino não
como um atributo do Deus masculino, mas como Deusa".
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